corpo em desconexão consigo; tantra ajuda a trazer presença

Vivemos em uma sociedade que perdeu o corpo. Curioso ver que estamos ao mesmo tempo obcecados pela estética e pela saúde – aparência e funcionamento – e desconectados do corpo que pulsa e sente. Nossa relação com o corpo que sente é de ódio ou ignorância, ou uma combinação dos dois. Nessa difícil relação há uma enorme influência da cultura, família, caminhos religiosos e sistema educacional. Vivemos sob a égide de um modelo patriarcal, apoiado fortemente no protagonismo da mente e do homem sobre as supostas “forças antagônicas”. A mente é mais importante que o corpo, assim como o homem é mais importante que a natureza. Assim, em nosso movimento histórico-civilizatório, reprimimos e suprimimos o feminino, inclusive a confiança nos sentidos, no instinto humano, na intuição. Assim como a natureza é vista como sendo caótica e perigosa se não for controlada, tal como são vistas as mulheres, o modelo patriarcal traduz os sentimentos como sinal de fraqueza e vulnerabilidades, quase uma distração. E, especialmente no Ocidente, com o predomínio da tradição judaico-cristã, predomina uma visão espiritual que trata o corpo como fonte de pecados e um inimigo à elevação do espírito. Por fim, incorporamos uma visão de mundo baseada no saber científico, que despreza aquilo que não é observável ou mensurável. Perdemos assim o aspecto sagrado do corpo e substituímos pelo entendimento da “máquina de bom funcionamento, cujas partes podem ser substituídas, mas que por fim se desgasta e acaba”. Ou seja, criamos um contexto cultural que combina o predomínio da mente sobre o corpo, que culpabiliza o corpo pelos desejos mundanos e pelo pecado, e que despreza o sutil, o misterioso, o abstrato. Na verdade, criamos assim um enorme problema para o ser humano e sua real necessidade de autoconhecimento, a partir do fato que somos induzidos a nos desligar do nosso corpo.

O arcabouço do conhecimento em psicologia e antropologia diz que o corpo expressa a maneira pela qual a pessoa experimenta a si mesma e vive no mundo. Portanto, devemos reconhecer que a nossa expressão corporal é moldada pelos acontecimentos passados e, principalmente, pelas interpretações que delineamos a partir deles. Todas as experiências contam, e aquelas mais significativas certamente produziram assinaturas de energia em nosso corpo, justamente pela nossa incapacidade em dar vazão a suas expressões e sentimentos decorrentes. Freud diz que “no inconsciente nada termina, nada é passado ou esquecido”. A psicanálise afirma que as emoções não-resolvidas irão penetrar no comportamento, manifestando-se de diversas formas, como por exemplo nos sonhos, pensamentos, brincadeiras, sintomas físicos e padrões de relacionamento.
Assim, temos uma conta que não fecha: enquanto o modelo cultural vigente nos induz a nos desligar do corpo que sente, está claro que estamos assim nos afastando de toda e qualquer possibilidade de construir um desenvolvimento saudável do ego. Enquanto nos mantivermos afastados da consciência corporal, não seremos capazes de lidar com as couraças musculares decorrentes da nossa necessidade de nos defender das emoções, memórias difíceis, traumas e estresses. Predominarão assim as demandas da família, sociedade e religiões sobre as nossas reais demandas por autoaceitação, autoconhecimento e desenvolvimento pessoal. Wilheim Reich e seus seguidores nos deram de presente a possibilidade de compreender que quando fechamos a torneira dos sentimentos difíceis – dor, raiva, medo – estamos também fechando a torneira do prazer, da coragem, da alegria e do amor. Em outra palavra, estamos fechando a torneira da vida, da vitalidade, do estar aqui e pertencer a esta existência.

Ao nos defender das emoções, enrijecemos os músculos e, principalmente, nos condicionamos a estar em estado de luta, de prontidão, de controle. Assim, perdemos ainda mais a condição de confiar na abundância da existência, na perfeição da consciência universal, na arquitetura suprema que organiza e disponibiliza tudo aquilo que precisamos para viver em harmonia e em paz. Não podemos: devemos estar prontos para a luta!

O Tantra é um caminho de desenvolvimento pessoal que sempre seguiu em caminhos opostos a esta visão apresentada acima. A tradição tântrica valoriza o corpo, a energia humana, os sentidos humanos e, principalmente, o casamento sagrado entre o masculino e o feminino, em nós, nas relações com os outros, com a natureza e com a existência. As escrituras tântricas apresentam uma visão da vida como algo especial que se realiza no aqui e no agora – diferentemente da visão da vida como uma preliminar que te prepara para o reino dos céus, onde aí sim, toda a existência irá finalmente fazer sentido. As várias facetas da tradição tântrica são convergentes em afirmar que as práticas tântricas são relevantes para todos aqueles que buscam cultivar autoconhecimento e estão sinceramente engajados na tarefa da evolução espiritual.

Mas a sociedade ocidental em geral ainda confunde tantra com sexo. Isso apenas empobrece o que é a essência do Tantra. Tantra é um estado de conexão com a nossa consciência superior, e a prática tântrica o caminho que nos leva ao contato com a essência divina, algo que já experimentamos e que está disponível em nós. Para o Tantra, o mundo não é uma realidade externa imposta a nós, mas uma experiência de cocriação – o mundo é ao mesmo tempo externo e interno. Se nos prendemos à ideia de vítimas de uma realidade sobre a qual não temos qualquer poder de transformação, estamos nos condenando ao sofrimento constante de quem é apenas receptor dos desígnios de forças externas, e apenas reforçamos a importância do estado de “permanente luta”. O mundo na visão tântrica é parte do nosso estado de consciência.

Para o Tantra a busca consiste em viver uma experiência de transcendência, tendo o corpo humano como o principal “veículo” para viabilizar esse novo estado. Mas transcendência do que, exatamente? O verbo transcender significa superar algo, ir além de algum limite. Uma boa forma de interpretar esse estado de transcendência tem a ver com a ideia dos ciclos de existência. Enquanto na tradição cartesiana ocidental a passagem do tempo é vista como uma experiência linear que liga o passado ao futuro, a abordagem tântrica a visualiza como uma interessante criação e recriação de ciclos. A existência e o universo para o Tantra parece pulsar em ciclos de expansão, contração e relaxamento. Especialmente, a cada ciclo o ser humano proporciona a si mesmo oportunidades de aprendizado e expansão de consciência.

Os ciclos respiratórios são bons exemplos, bem como as experiências meditativas e as experiências orgásticas. Casamentos, relacionamentos, projetos, cursos, dentre outros exemplos, estão acontecendo a todo tempo conosco. Mas, em nossa desconexão com o corpo e com o autoconhecimento a partir do fluxo de sentimentos e da expressão energética, desprezamos o potencial de renovação e aprofundamento que esses ciclos oferecem. Em especial, nos identificamos com as reações emocionais e atitudes decorrentes das experiências vivenciadas nesses ciclos. Assim, muitos de nós trazem entendimentos limitantes do tipo: “todo homem (mulher) é igual”, “prefiro ficar sozinho (a)”, “não consigo ser bem sucedido (a)”, “não mereço ser amado (a)”, “não sou capaz”, “meu corpo não é capaz de me levar ao orgasmo”, “sexo é sujo” e por aí vai. São nada mais nada menos que identificações do nosso ego, que retiram boa parte da nossa capacidade de compreender a auto-responsabilidade que temos com a criação das nossas realidades. O Tantra, em sua essência, é um convite a transcender essas identificações limitantes do ego, transcender as divisas autoimpostas entre o que é material e o que é divino, entre o que é inferior e o que é superior, certo e errado, claro e escuro; transcender as dualidades e reconhecê-las como aspectos de uma mesma energia.

O Tantra é o caminho da celebração da existência, de aceitação da nossa condição de seres em constante processo de evolução e do compromisso inabalável com o autoconhecimento. O Tantra é a realização aqui e agora de todo o potencial humano. Para o Tantra, a experiência de vida se dá no estado de relaxamento, não na luta. Na luta, o movimento energético cessa e o ser humano se enrijece. Isso vai contra a vida. Vida para o Tantra é movimento, é fluxo constante, assim como as águas se movimentam em direção ao oceano, em determinados momentos em fluxo mais caótico, em outros mais contemplativo e sereno.

Para essa realização, precisamos regressar ao corpo, reconhecendo-o como o instrumento sagrado de conexão com as várias possibilidades que a existência abundante nos oferece. Quando tivermos plenamente a consciência do nosso corpo e das nossas emoções, teremos definitivamente criado as melhores condições para fazer escolhas autônomas e saudáveis em nossa vida e criar e manter relacionamentos saudáveis e que aprofundem na intimidade.

Esse movimento de regresso ao corpo não poderá ser feito diretamente pela mente, ela não é o melhor agente para isso. Ou seja, voltar-se para o corpo não pode ser feito a partir de um movimento intelectual, teórico e científico. Aliás, não poderá ser feito sem o protagonismo da energia corporal. Ela é o elo de ligação entre todas essas possibilidades, ela é o continuum que interliga as dimensões, o mundano e o espiritual, a mente e as emoções.

Por esse motivo, as práticas tântricas envolvem o despertar da energia corporal. Na essência do Tantra está a busca pelo estado meditativo, ou seja, a realização do compartilhamento do protagonismo da existência entre todos os centros de controle, ao invés apenas da mente. Na meditação criamos experiências de conexão com o silêncio das nossas entranhas, com o poder dos nossos chakras e, em suma, reduzimos o poder de influência das identificações limitantes do nosso ego – daí a ideia da transcendência que citei acima. No Tantra a respiração, a meditação e a movimentação energética são instrumentos poderosos de expansão do ser.
O Tantra se realiza no aqui e no agora!